SEMANA SANTA de Astrogildo Miag*
Comentando Poesia
Hezio Teixeira
Brasília, 09 de abril de 2015
Resenha do poema
Ah que saudades
da minha semana santa de criança!...
Avó Mintora pagando promessa
fazendo sacrifício não tomando café.
As ruas enfeitadas
minha mãe fazendo empadas...
— Não compre carne!...
Ai que saudade...
Os soldados sem farda
os presos em suas casas
o comércio fechado
eu jogando farinha pra’s piabas
o delegado tomando cachaça...
— Mentira! Nesses dias só tomo vinho.
Ai que saudade...
O Raulzinho ajudando a missa
um velho pedia esmola e eu lhe dava uma talhada de
abóbora.
O Cenço passando a noite sem dormir...
A radiola de seu Pedro Téofanes dizendo bem alto a
paixão de Deus:
— Crucifica-o! Crucifica-o!
E eu me tremia dos pés à cabeça.
Ai que saudade...
A fazenda, o catecismo...
— Hoje é dia de eucaristia...
— Amanhã não tem missa.
Ai que
saudade...
Bolinhos, melancias...
— Eu vou, eu vou!
— Menino não pode ir.
— E o Raulzinho?
— Besta, você vai ficar com medo
os penitentes vêm todo de preto.
Ai que saudade...
Matraca, o rádio, a ‘Ná Rosa...
— Eu vou! Eu vou!
— Não vai, não! Amanhã tem procissão.
E só não vai tomar uma surra
porque está na Semana Santa.
Ah que saudades
da minha Semana Santa de criança.
Nesse poema sobre a saudade de um
tempo circunstanciado da sua infância, o poeta evoca aspectos sociológicos e
históricos de uma época sob a bandeira da religiosidade. A linguagem direta e a
tessitura coloquial são apropriadas para retratar o pensamento pueril e temente
da época.
No primeiro verso, o autor dá, sem
rodeios, o mote do que vem a ser o poema demonstrando quem é o eu lírico que o
dita ao dizer ”Ah que saudades da minha semana
santa de criança!...” Naturalmente que o jovem poeta tem, acesos em sua
lembrança, segredos inconfessáveis sobre os quais não vai falar no poema ou
talvez apenas os deixe suspensos nas entrelinhas. A crítica de menino à atitude
dos adultos diante da sacro-santidade dos dias da Semana Santa, no entanto é a
primeira batida de asas da sua imaginação. Saudade e Semana são as palavras
chaves. Saudade, aliás, ele usa cinco vezes no singular e duas no plural,
chegando a doer no poeta leitor a dor do poeta autor.
Estruturado
em 6 estrofes de 6, 7, 7, 4 e 6 versos
livres, rima e métrica são ocasionais. A lírica está nas viagens que a
subjetividade não proposta nos deixa criar, tornando poeta o leitor. As
lembranças de cada leitor são o eu lírico agindo.
Há três assuntos
principais no poema: a religiosidade, a ética social e a irreverência do
menino.
Na primeira
estrofe, a família entra com sua composição includente habitual à época e,
desde já, mostra a visão critica do menino sobre as atitudes dos adultos: Vó
Mintora fazendo o “sacrifício” de não beber café e a mãe fazendo empadas, sem
carne(!). Para a criança, que significado poderia ter tudo isso, senão o de
entreter-se? Ah, as ruas. Estavam enfeitadas e tudo era alegria. Festa é festa.
A segunda
estrofe dedica-se a introduzir o poeta-leitor no meio mais amplo, a cidade com
sua ética, sua justiça e sua falsidade. Os soldados não eram soldados: ninguém seria
preso. Os presos estavam soltos: Em tempo de contrição, nem os presos cometem
crimes, se soltos. Eram presos pela lei, trancafiados nos outros dias, mas
nesses, o que os prendia era o pensamento no sacrifício de Jesus. Quem poderia ganhar dinheiro, trabalhar
nesses dias: o comercio fechou suas portas e o delegado que não tinha firmeza
da sua fé, bebia cachaça, embora atestasse ser vinho, num respeito hipócrita.
Era a ética social religiosa que mantinha a vida em ordem, ao influenciar lei e
os costumes.
As demais estrofes dedicam-se aos importantes
afazeres de menino. Dar farinha às piabas (este ainda na primeira estrofe)
permeando o decorrer dos acontecimentos religiosos. Dormir tarde, ajudar na
missa, fazer traquinagens, desobedecer os ensinamentos piedosos (dar uma fatia
de abóbora no lugar de esmola) que todos deviam praticar especialmente na
Semana Santa. Um mais endinheirado, botando a radiola a serviço dos fiéis,
tocando a paixão de Cristo ... crucifica-o!, para apiedar os adultos e
amedrontar os meninos. A matraca chamando os fiéis (ah, a matraca: instrumento
da maior simplicidade, dedicado a fundamental importância – coisas de fiéis
cristãos), e o rádio, o mais importante meio de comunicação das massas, desde
que essas foram alcançadas por ele.
A última
parte do poema leva-nos a enredar raciocínio sobre uma das mais importantes e descumpridas
responsabilidades humanas: a paternidade. Nos tempos de que trata o poema,
menino apanhava para tornar-se homem; sentia as dores do aprendizado para não
sentir as da punição irremediável. A teimosia
de menino seria merecedora de um bons corretivos, mas não na Semana Santa. E o
poeta não demonstra tristeza, nem desvio de conduta pelas suras que tomou, por
desobedecer, mas encerra o poema com a pluralização da saudade que lhe representa a Semana Santa e, de resto, a
infância, sinteticamente relatada nos versos:
Ah, que saudades da minha Semana Santa de criança.
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