O desmonte do promotor
Em
Itapemirim, no Espírito Santo, havia um promotor de justiça com fama de durão,
briguento. Sabe como é essa gente.
Num
cartório de notas, além do tabelião e de um escrevente, trabalhava um noviço.
Podia alguma coisa, mas tinha de saber seu papel no teatro da vida. Merecedor
da confiança do tabelião, de família detentora de algum respeito na praça, bom
de conversa ... nada mais.
Deu-se
que esse dito promotor Roberto Daniel comprou umas terras de um espólio e uns
dos que assinariam a escritura moravam na capital. O promotor besuntou de
conversa o ouvido do tabelião, querendo levar o livro a Vitória para colher as
assinaturas. Seu Walmerly, o tabelião ponderou. Não podia entregar-lhe o livro.
Senão, amanhã ficariam ambo em maus lençóis, descoberta essa irregularidade.
A
solução foi dar o livro aos cuidados do noviço que o levaria colado ao peito,
feito bíblia de protestante. Ouviu as recomendações: ouvir muito, falar pouco,
conferir os documentos, colher as assinaturas e voltar. Iria e voltaria, levado
pelo promotor, no seu VW TL 1600.
Durante
a viagem, o promotor foi conversando com o moçoilo, contando histórias e ele
meio ressabiado pela responsabilidade, limitado suas opiniões. Correu tudo bem.
Foram almoçar na casa do promotor solteirão. Quintal arborizado, casa fria,
moveis antiquados, janelas pequenas, cachorrada dentro de casa. Comida simples,
ninguém na casa. Ambos comeram. Numa mesa auxiliar, lápis bem apontado, fichas
... “meu pai é comerciante e eu faço os controles pra ele”. A foto do velho pai estava na parede ao lado.
Ambos calvos e de feição árabe.
Gastaram
uma boa hora pra sair de casa. O promotor pra lá e pra cá. O velho comerciante
apareceu e cumprimentou o visitante. Pai e filho trocaram palavras inaudíveis.
Explicações do filho ao pai, talvez. Beijou a mão do pai. Saíram para a missão
a que o dia se destinava.
Durante
o trajeto promotor esteve taciturno. Já se aproximando do destino, resolveu
prevenir o guarda livro.
É
o seguinte, meu caro Ferreira, você não vai estranhar. Deixa o pessoal assinar
tudo direitinho que eu vou dar uma bronca nessa gente. Andaram dizendo umas
coisas e eu não gostei. Comprei, paguei e dizem que eu estou pagando pouco, que
se abriram pra mim. Ora essa! Pensam o quê? Podem falar o que bem quiserem? E
prosseguiu com aquela cara de diabo acusando cristão.
O
rapaz não exagerou em preocupação. Reprovava o modo de agir da autoridade, mas
nada podia dizer, contradizendo-o. Era aguardar resignado.
Chegaram
ao endereço. Saíram ambos do carro estacionado, o promotor à frente pisando
firme ... palmas. Surgiu uma senhora sob
o umbral, no alto de três degraus, já com sorriso largo, braços abertos e
discursou: “doutor Roberto Daniel, desculpe. Andaram dizendo umas bobagens, mas
o senhor é homem culto, não vai levar isso em consideração”, desarmando o
comprador.
Entraram,
todos assinaram, cumpriram-se as formalidades. Não aceitaram esperar para o
cafezinho. O funcionário tomou seu volume e saiu, seguindo o promotor. Numa
olhadela para trás, viu risos discretos de alívio e de um certo sarcasmo típico
dos que vencem sem lutar.
Mais
uma hora de silêncio do promotor que sentia-se derrotado, por ter mordido a
língua, sem poder destilar seu costumeiro veneno.
É,
Ferreira, depois que inventaram essa palavra desculpa ninguém mais pode ouvir o
que merece. Sorriso largo e braços
abertos, então, quem pode com isso. Com efeito, ninguém.
Se
fosse no tribunal.
Hezio Teixeira -
do livro "Toda Prosa", coletânea 2017 da Aletras
Academia águaslindense de letras
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