O discurso comovente de d’A Lágrima de Guerra Junqueiro

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Hezio Teixeira*
  

Ainda surpreendo-me, 45 anos depois de haver lido pela primeira vez, com a oralidade contida no “A lágrima”, de Guerra Junqueiro. Ainda espanta-me o discurso silencioso da etérea lágrima, exercida em sua passividade, ante as manobras sedutoras dos seus pretendentes. Nem ouro, nem poder, nem força. Todos apequenados em importância, ante a gota de orvalho.
  
Ainda rendo-me ao trabalho professoral do quase simplório e antiquado Antônio Ferreira, o professor que apresentou a mim esse poeta inesquecível. No entanto, se se reunissem hoje meus colegas de sala da época para perguntar “quem se lembra”, pressinto: um ou outro apenas apresentar-me-ia reminiscências do poema, mas duvido que alguém do professor tenha se esquecido. 

Nem o prof. Antônio restringiu-se a esse poeta, nem esse poeta restringiu-se a essa obra, logicamente. Contudo, a intensidade do discurso, a complexidade narrativa e a eloquência da mensagem possibilitam ao leitor a imediata construção mental do cenário, a percepção do estado emocional das personagens secundárias e a marcante personalidade da personagem principal, a lágrima, tornando-o único.

O cenário construído pelo poeta para a existência momentânea da lágrima “etérea”, uma “encosta escalvada, seca e deserta”, numa provável alusão ao nordeste brasileiro, ganha importância instantânea com o pomposo “cortejo de espavento” de um rei por quem elevam-se ao ar “trinta pendões”. 
  
Segundo a cortejar a lágrima “irisada” (que reproduz as cores do arco íris), típico personagem das novelas de cavalaria medievais, “couraçado de ferro, épico e deslumbrante” o cavaleiro oferece vitórias ao fio da espada e o colo “auroreal de rosa e de alabastro” de sua noiva, por quem luta ele todas as lutas, gloriosas ou inglórias, à volta.

Completando o cortejo inócuo, a lágrima desdenha-se da avareza e da mesquinhez de um velhinho judeu que oferece em sua troca toda a sua carga de “oiro em montão”, sem sequer dizer o que faria com ela. Mesmo sabendo que vale mais do que “os impérios dos reis e os navios do mar”, no entanto, a lágrima queda silenciosa. 

Resignada ao seu destino etéreo, após esse teatro fantástico, a lágrima e seu habitat voltam ao que eram. E no ensejo da maravilhosa ação da sabedoria natural, atendendo aos reclames profundamente emocionados e plenamente justificados de um cardo agreste que, sob a figueira, agonizava, a lágrima desprende-se da folha áspera e resistente da figueira e cai silenciosa sobre o cardo que, em agradecimento, revive e floresce. Mas não um florescer qualquer: de um colorido especial eu lembram as chagas de Cristo.

Vamos ao poema ...


Manhã de junho ardente.
Uma encosta escalvada,
seca, deserta e nua,
à beira d'uma estrada.

Terra ingrata, onde a urze
a custo desabrocha,
bebendo o sol, comendo o pó,
mordendo a rocha.

Sob a folha hostil duma figueira brava,
Mendiga que se nutre ad pedregulho e lava,
A aurora desprendeu, compassiva e divina,
uma lágrima etérea, enorme e cristalina.

Lágrima tão ideal, tão límpida,  que ao vê-la,
de perto era um diamante e de longe uma estrela.
Passa um rei com o seu cortejo de espavento.
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.

"No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar,
Há safiras sem conta e brilhantes sem par”
"Há rubis orientais, sangrentos e doirados,
como beijos d'amor, a arder, cristalizados”.

"Há pérolas que são gotas de mágoa imensa,
que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa”.
"Pois, brilhantes, rubis e pérolas de Ofir,
tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir
nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,
vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!"

E a lágrima celeste, ingênua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.

Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,
passa no seu ginete um cavaleiro andante.
E o cavaleiro diz à lágrima irisada:
"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!”
"Far-te-ei relampejar, de vitória em vitória,
na Terra Santa, à luz da fé, ao sol da glória!

"E à volta há de guardar-te a minha noiva, ó astro,
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.
"E assim alumiarás com teu vivo esplendor
mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!"
E a lágrima celeste, ingênua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.

Montado numa mula escura, de caminho,
Passa um velho judeu, Avarento e mesquinho.
Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:
grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro.
E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
o crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,

Vendo a estrela, exclamou: "yOh Deus, que maravilha!
Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha!
"Com meu oiro em montão podiam-se comprar
os impérios dos reis e os navios do mar,
"E por esse diamante esplêndido trocara
todo o meu oiro imenso a minha mão avara!"

E a lágrima celeste, ingênua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
Debaixo da figueira, então, um cardo agreste,
já ressequido, disse à lágrima celeste:
"A terra onde o lilás e a balsamina medra
para mim teve sempre um coração de pedra.

"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.
"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,
ouvi trinar, gorjear a música dos ninhos.
"Nunca junto de mim ranchos de namoradas
debandaram, cantando, em noites estreladas...

"Voa a ave no azul e passa longe o amor,
Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!...
"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água,
cai na desolação desta infinita mágoa!"
E a lágrima celeste, ingênua e luminosa,
Tremeu, tremeu, tremeu... e caiu Silenciosa!

Algum tempo depois o triste cardo exangue,
reverdecendo, dava uma flor cor de sangue,
Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito,
como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...
E ao cálix virginal da pobre flor vermelha,
ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...

(*) jornalista SRTDF-8685
Licenciado em Letras.

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