Um dia de alegria.

 

Conversa de bar ... vô contá procês ... aconteceu mesmo. Há uns cinco anos.

Entro naquele bar dance dali, da Rio de Janeiro, vou pra uma mesa bem no canto, perto da janela, pra me esconder, é claro. Dezoito anos não é idade de vacilar, não. Governo militar, se a polícia ou exército bate num recinto qualquer, não importa quem tá lá. O pau canta. Todo mundo tem de se identificar e ai de quem não tem documento. Vai preso por vadiagem, por desordem, por bebedeira … por desacato, então, virgem Maria, vai pá de gente presa. E tem a maldita prisão para averiguação.

Sem dinheiro, sem família, não posso dar sopa na rua depois de anoitecer. Depois das dez da noite, então, nem pensar. E, quando a sorte engancha no cangote de alguém, gente, tudo dá certo, mas se o azar senta no ombro do sujeito, é baixar a cabeça e viver encurvado, até pintar um diamante na bateia.
Fico observando um velhote sentado, cerveja na mesa, copo servido e intocado, lê jornal, escondido atrás dele ali, na mesa pertinho.  Vez ou outra ele olha por cima do jornal.

Vim pra Beagá tentar a sorte e a danada demorou pra me achar. Quando saí de São João, era uma boca a menos pra minha mãe encher. Meu pai morreu num quarto de hotel, quando eu era menino. Foi achado dois dias depois, porque arrombaram a porta. Coisa triste, sô.

Uma coisa que aprendi aqui foi afogar minha tristeza nas casas do centro. Não que eu seja triste, modo de dizer, porque vocês sabem que eu vivo bem, sou bem casado, minha mulher é nova, bonita. Eu já viajei o Brasil de avião. Só não conheço dois estados.

Mas o início foi difícil. Meu primeiro emprego, na loja de artigos dentários, o salário era pouco. Agora não, sou representante comercial, ganho bem, mas, naquele tempo ...

Lá estou eu morando no consultório de um dentista que me tirou da rua. Comendo por aí e dormindo num colchãozinho guardado atrás da porta, as roupas numa mala, atrás do sofá. Bom homem, aquele. Ninguém pode saber que depois que ele finda o expediente, eu entro. De manhã cedo, tudo fica arrumadinho, que Deus o tenha.

Entro no boteco. Lá estou ... música de vitrola, dança e muita conversa. De repente, todo mundo se cala. Entram três milicos. Um fica lá, parado na porta e dois andam de mesa em mesa ... documentos ... tenho não senhor ... tá preso ... mão na nuca ... sai catando cavaco ... na porta, mais um safanão ... desce a escada cambaleando ... lá em baixo, é empurrado no camburão ... humilhado.
Véspera de dia das mães, eu sem dinheiro pra ir ver minha rainha, entro aqui pra espantar a tristeza e vou ser preso ... falei pra mim mesmo. Maldita hora que larguei meus documentos na mala. Me encolho todo, esperando minha vez, me moendo de raiva e medo.

Chegam à mesa do senhor o jornal. Quieto, só olhando por cima do jornal e voltando a ler. Um deles, mais abusado, dá um tapa com as costas da mão esquerda no jornal, cassetete na direita e diz: “você aí, ô velhote”. Sacana! Pensei.

O homem dobra bem o jornal e bota sobre a mesa, calmamente, enquanto o meganha o destrata, mete polegar e indicador direitos no bolso traseiro direito da calça cáqui, traz uma carteirinha e mete na cara dos dois, assim, à moda juiz de futebol. A cena é grotesca. Os dois olham a carteira e fazem continência na hora. Relaxo, respiro rápido e fundo. Ponham suas armas na mesa ... sim senhor ... quem ensinou vocês desrespeitarem os cidadãos desse jeito? ... Esse povo tá se divertindo em ordem ... quem é o comandante? Vem de lá o da porta, divisas no ombro, vê a carteirinha ... faz continência na hora ... sim senhor ... sim senhor. O velho descascou.

Eu chorei de alegria. Chorei e ri.

O velho abençoado leva os três escada abaixo, depois de dar-lhes voz de prisão. Na rua, solta os presos, bota até o motorista no camburão, fecha o fusca e vai dirigindo a veraneio.


Todos voltaram para cima. E eu, cara, nem te conto. Nó ...

Hezio Teixeira
do livro Toda a Prosa - coletânea 2017 da 
ALETRAS - Academia Aguaslindense de letras

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