uma lenda chamada navalha
Ninguém poderia imaginar.
Da janela do seu apartamento no
prédio branco da QNL, Edmilson via a casa arrumadinha. Uma vez ou outra, via
sair de casa um senhor negro corpulento, olhar investigativo, simpático.
Mauro Dutra Torres
Os homens o conheciam bem, as
mulheres, melhor. Era seu Mauro pra cá, seu Mauro pra lá. O vizinho admirado
era motorista de ministério. Bom salário, terno, unhas cuidadas.
Chegou o carro fúnebre, aquele
rabecão esquisito. Devia ser menos triste, esse veículo que leva morto. Um
cara boa praça como o seu Mauro, ser levado em sua última viagem num carro feio
desses. Injusto. Mas, dona Creuza, o que isso tem a ver? Quem morreu, morreu.
Fica só na nossa lembrança. Credo, Seu Fiuza, eu gostava tanto dele. Tô
sabendo, Dona Creuza. Debaixo desse angu tem carne.
Edmilson havia descido pra
assuntar o movimento em torno da morte do vizinho. Não era todo dia que morria
alguém assim, tão pertinho. Embora não fosse enturmado com a vizinhança, foi
assuntar. A idade muda a gente.
Bom dia, bom dia. Seu Mauro
faleceu? Sim, que pena, um homem tão bom, o senhor o conhecia? De vista, mas
sei que ele era querido pela vizinhança. É, seu Edmilson, mas com os homens,
era meio mandão. Que isso, seu Fiuza.
Entra pra dentro, gente – a
mulher tinha ar de choro. Deve ser a viúva. Edmilson aproveitou entrou também.
O velório será no cemitério, logo ali. Capela 05.
O corpo foi sendo retirado,
arrumado, na urna funerária. Quiseram dar uma olhadinha. Edmilson foi o
último. Olhou e ficou branco como seda. Cruzou os braços, apertando-os contra o
peito e murmurou. Meu Deus, esse é o Navalha! Negro arruaceiro bom
de briga como ninguém. Olhou
de novo e jurou ter visto o morto dar-lhe uma piscadela. Enganou todo mundo, o
safado. Riu mentalmente admirado e invejoso.
Entrou na sala uma mulher loira,
meia idade, agradeceu a todos pela presença e pelo apoio, cofereceu um
cafezinho. Soluçou, limpou o rosto. Ele era tão bom pra mim. Eu o conheci num
hotel. Eu era camareira, me tirou de lá. Disse que era separado, praticamente
me adotou. Eu era tão nova. Ele ficou doido. Pena que eu nunca pude saber nada
mais sobre ele, além do que ele me disse. Não temos filhos, não sei quem foram
seus parentes. Disse que gostava de uma briga, quando menino, revoltado com
injustiças contra pobres e negros. Era meio mulherengo, mas isso a gente
entente. Bonito, forte, marrento, dominador, mas de um coração sem tamanho. Ai,
meu Deus. O que será de mim. Ele era do Espírito Santo. Descobri recentemente.
Sua vida foi um ministério, mas tinha um costa quente, a quem ele era muito
fiel. Tudo dava certo em sua vida. Agora, vou abrir uns guardados secretos, que
ele deixou pra quando morresse.
Do jeito que loira gosta de um
negão. Uai, Dona Creuza, tá se revelando. Seu Fiúza ... larga de inveja.
Ela era muito frequente na casa
deles. Edmilson não respondeu. Saíram todos.
Alguns domingos depois, o Jornal
Capixaba destacou uma nota:
História de Navalha, lendário
arruaceiro, falecido em Taguatinga no Distrito Federal, vai virar livro e
roteiro de filme. Na juventude, Navalha foi o mais temido líder da rapaziada
da sua cidade. Um pavena de marca maior, amado e odiado, Navalha desapareceu
da cidade, perseguido pela polícia que o acusava de crimes que ele afirmava não
ter cometido. Depois de enfrentar um cerco de mais de dez homens e derrotar
quatro em luta corporal, nunca mais foi encontrado.
Sabe-se agora, por anotações que
ele mesmo manteve secretas que, a pedido do Padre Afonso, um deputado levou-o
para Brasília. Deu-lhe nome e sobrenome, registro de nascimento, carteira de
identidade, carteira de trabalho, carteira de motorista e arranjou pra ele um
emprego de motorista no governo. Foi prestador de favores a uns poderosos.
Coisa de cinema, ainda não revelada.
Navalha tornou-se o cidadão Mauro
Dutra Torres, viveu na sombra de seu emprego, das mulheres que conquistou e de
seu passado
.
Morreu dignamente, aos 75 anos.
Edmilson leu a nota, vasculhou a própria
infância, naquele tempo em que no negro Navalha tocava o terror. Ele rapaz, eu
menino ... como pude viver esse tempo todo aqui, pertinho do safado, sem
desconfiar de nada.
Hezio Teixeira -
do livro "Toda Prosa", coletânea 2017 da Aletras
Academia águas-lindense de letras
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